Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Vocábulos nascem de expressões populares. Assim como
nomes próprios trazem significados que deitam raízes em suas respectivas
etimologias.
Feliciano é nome de origem latina, derivado de felix,
feliz. Nem sempre, contudo, uma pessoa chamada Modesto deixa de ser arrogante e
conheço uma Anabela que é de uma feiura de fazer dó.
Estamos todos nós, defensores dos direitos humanos, às
voltas com um pepino federal. Nossos servidores na Câmara dos Deputados,
aqueles cujos altos salários e complementos (viagens aéreas, planos de saúde,
assessores etc.) são pagos pelo nosso bolso, e a quem demos empregos através do
voto, cometeram o equívoco de eleger o deputado e pastor Marco Feliciano para
presidir a Comissão de Direitos Humanos.
O pastor-deputado, filiado ao PSC-SP, escreveu em seu
twitter: "Africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato.”
Em outra mensagem, postou: "Entre meus inimigos na net (sic) estão: satanistas,
homoafetivos, macumbeiros...”
Em processo aberto no Supremo Tribunal Federal,
Feliciano é acusado de induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça,
cor, etnia, religião, crime sujeito à prisão de um a três anos, além de multa.
Em sua defesa, protocolada, a 21 de março, pelo
advogado Rafael Novaes da Silva, Feliciano afirma: "Citando a Bíblia (...)
africanos descendem de Cão (sic) (ou Cam), filho de Noé. E, como cristãos,
cremos em bênçãos e, portanto, não podemos ignorar as maldições.”
Que deus é este que amaldiçoa seus próprios filhos?
Essa suposta teologia vigorou no Brasil colonial para justificar a escravidão.
O Deus de Jesus ama incondicionalmente todos os homens e mulheres, e ainda que
O rejeitemos Ele não deixa de nos amar, conforme atestam a relação do profeta
Oseias com sua mulher Gomer e a parábola do Filho Pródigo.
Todo fundamentalismo cristão é ancorado na
interpretação literal da Bíblia, que deriva da ignorância exegética e
teológica. Os criacionistas, por exemplo, que negam o evolucionismo constatado
por Darwin, acreditam que existiram um senhor chamado Adão e uma senhora
chamada Eva, dos quais somos descendentes (embora não expliquem como, pois
tiveram dois filhos homens, Caim e Abel...). Ora, Adão em hebraico é terra, e
Eva, vida. O autor bíblico quis acentuar que a vida, dom maior de Deus, brota
da terra.
Ter Feliciano
como presidente de uma Comissão tão importante – por culpa de grandes legendas
como PMDB, PSDB e PT – é uma infelicidade, pois não condiz com o nome do
deputado que, na roda do samba que está sendo obrigado a dançar, insiste no
refrão: "Daqui não saio, daqui ninguém me tira.”
O deputado é um pastor evangélico. Sua conduta
deveria, no mínimo, coincidir com os valores pregados por Jesus, que jamais
discriminou alguém.
Jesus condenou o preconceito dos discípulos à mulher
sírio-fenícia; atendeu solícito o apelo do centurião romano (um pagão!)
interessado na cura de seu servo; deixou que uma mulher de má reputação lhe
lavasse os pés com os próprios cabelos, e ainda recriminou os que se
escandalizaram ao presenciar a cena; e não emitiu uma única frase moralista à
samaritana adepta da rotatividade conjugal, pois estava no sexto homem! Ao
contrário, a ela Jesus se revelou como o Messias.
É direito intrínseco de todo ser humano, e também da
democracia, cada um pensar pela própria cabeça, seguir a sua consciência. Nada
contra o pastor Feliciano, na contramão do Evangelho, abominar negros e odiar
homossexuais e adeptos da macumba. Desde que não transforme seu preconceito em
atitude discriminatória, e seu mandato em retrocesso às conquistas que a
sociedade brasileira alcança na área dos direitos humanos.
Estamos todos nós, brasileiros e brasileiras,
indignados e perplexos frente ao impasse armado pelo jogo político rasteiro da
Câmara dos Deputados. Eis uma verdadeira situação de infelicianeidade, com a
qual não podemos nos conformar.
[Frei Betto é escritor, autor do romance "Aldeia do
Silêncio” (Rocco), entre outros livros.
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